PERCORRENDO-ME
EM TEMPOS DE CORONAVÍRUS – TEXTO #1
EM TEMPOS DE CORONAVÍRUS – TEXTO #1
Mário
Fellipe (Doutorando em
Sociologia - UFC)
Eu tinha acabado de chegar em Paris quando o
presidente francês Emmanuel Macron anunciara o confinamento em massa da
população, em função da pandemia do novo coronavírus. Paris era o quarto
destino de uma viagem que eu estava fazendo para a Europa. Na minha vida
pessoal, tentava recobrar o equilíbrio após o término inesperado de uma relação
amorosa de longa data. À minha volta, o mundo parecia ter entrado em completo
desequilíbrio após a invasão de um ser invisível e desconhecido.
Embora estivesse
atravessando um drama pessoal, tive a oportunidade, antes da disseminação do
vírus pelo mundo, de vivenciar uma experiência importante durante a viagem: a
de estar só. A viagem permitiu-me estar só em diferentes lugares, caminhar
livremente pelas ruas, parar para observar as pessoas, dar espaço para sentir
diferentes sensações e de experimentar situações inusitadas. Vivi Lisboa,
Barcelona e Londres em meio a longas caminhadas realizadas na companhia de mim
mesmo.
Foi caminhando
que eu pude me redescobrir como corpo, habitante e habitado por um espaço.
Corpo que, face ao cansaço do peso de ser sempre o mesmo, se lançava no
desconhecido, mas que era logo capturado por uma rotina e por uma história que
o lembravam sobre sua pouca habilidade para lidar com as mudanças. Caminhar foi
um modo que encontrei de exercitar os meus limites e as minhas possibilidades,
de matar o tempo, de dar folga ao pensamento, mas também de tocar no meu vazio
e de elaborar a minha dor. Ao mesmo tempo em que eu aprendia a caminhar por
aquelas ruas desconhecidas, aprendia também a me percorrer, a caminhar pelos
contornos acidentados da minha subjetividade.
A cada parada, aprendi um pouco sobre o viver,
sobre o amar, sobre mim, sobre o outro e sobre o espaço que eu pisava. Percorri
o meu vazio enquanto fazia longas caminhadas. Aprendi a me ver enquanto olhava
para a cidade. Caminhando, eu me achei e me perdi em minhas contradições.
Caminhando, visitei lugares, fiz registro deles e de mim, exercitei o meu
sentir, mas também fui tomado por um sentimento de tristeza ao me deparar com o
vazio das ruas e senti saudade da cadência de tempos normais. Enquanto estive
nessas cidades, fui uma testemunha ocular de seus movimentos e acontecimentos.
Era sábado quando cheguei a Paris. Naquela
noite, acompanhado do meu companheiro, guardamos as malas nos hotéis e fomos
comer uma pizza. Enquanto comíamos a pizza, assistíamos pela TV o
pronunciamento do presidente francês. Não compreendíamos nada da língua. Só
soube depois que em sua fala insistia no alerta: “Estamos em guerra”, enquanto
anunciava a urgência do isolamento social, como medida preventiva a propagação
do vírus recém chegado em território francês. A partir da meia noite daquele
sábado, restaurantes, bares, lojas e espaços como museus e sítios históricos fechariam
por tempo indeterminado. Apenas supermercados e farmácias manteriam seu
funcionamento normal.
No dia seguinte, ao caminhar nos arredores do
bairro em que eu estava hospedado à procura de algo para me alimentar, observei
que as ruas estavam semi-desertas e quase todo o comércio fechado. Chamou-me a
atenção uma frase estampada de um supermercado que dizia que LA REVOLUTION SERA
FEMINIST. Minha sensação ao ver aquela Paris foi de enorme tristeza. Era
domingo e eu estava hospedado em um bairro conhecido por famosas galerias de
arte, restaurantes de rua e por abrigar o apartamento onde nasceu e morou, por
vários anos, a cantora Édith Piaf, locais que, infelizmente, não pude conhecer.
O vazio de dias de domingo penetrava-se por entre as ruas da cidade, cobrindo o
tempo de silêncio e de tristeza. Alguma coisa havia mudado na cidade do amor.
Agora, impedido de caminhar livremente pelas ruas, isolado em um quarto de
hotel, me vi forçado a voltar meu olhar sobre um sujeito em ebulição, habitando
um mundo também em ebulição. O corpo, descostumado do hábito da rotina, não
sabia o que fazer com suas turbulências e inquietudes. Sentia dúvida com
relação ao seu futuro e ao futuro do mundo. Momentos de suspensão nos lembram
acerca de nossa condição corporal, onde o corpo é convocado constantemente para
sentir afetos dos mais diversos e situações das mais inesperadas.
O mundo, conforme a gente conhecia, estava em
suspensão.
Experimentávamos aquilo que Bauman chamou de
estado de interregno, onde não éramos nem uma coisa nem outra. O clima era de
incerteza. A única coisa que sabíamos era que precisaríamos nos isolar em
nossas casas. Tivemos que introduzir novos hábitos ao sair de casa: máscara no
rosto, algumas gotas de álcool em gel nas mãos e atenção a distância social de
2 metros. Pude experimentar essa sensação de luto em relação ao mundo que
conhecíamos ao caminhar pela Champys Élyssés. Conhecida pelos seus
restaurantes, cafés e lojas de luxo, a avenida mais prestigiada do mundo estava
vazia. A grande cadeia do consumo tinha parado. Algumas das grandes lojas que
moldaram nosso desejo e nossa forma de ser, de consumir e de viver se dedicavam
agora à confecção de máscaras e de equipamentos de proteção individual. O
silêncio das ruas era quebrado com gestos coletivos de agradecimento dirigidos
aos profissionais de saúde que coloriam de vida as sacadas das janelas das
casas. O mundo parecia estar mudando.
De repente, do dia para noite, tudo havia
parado. Fomos forçados a nos isolar no interior de nossas casas, visando a proteger
esse outro que durante tanto tempo foi visto como ameaçador, embora destituído
de qualquer risco de perigo. Por um tempo, os muros que nos separavam pareciam
ter mudado de lugar e de propósito: nossos lares se convertiam nos muros que,
outrora, nos mantinham separados, mas, agora em nome da proteção do outro. Mas,
o vírus também expunha a virulência do nosso egoísmo, por meio de um
nacionalismo extremado que, visando ao cuidado somente dos seus, usa da
influência e do poder de barganha em benefício próprio, mesmo que isso custe a
morte de milhares de pessoas. A emergência do vírus colocou em cheque os
limites do nosso modo de viver em sociedade, forçando as nações do mundo a
implementarem políticas de proteção social, fortalecerem o sistema de saúde universal
e darem ouvidos à ciência. Como disse também a historiadora Lilian Schwarcz, “a
ciência que era bandido, tornou-se a grande utopia.”
Como disse o filósofo Manfredo de Oliveira,
durante muito tempo a crença nesse nosso antigo modo de vida, pautado em uma
absolutização do mercado e na promessa de um mundo livre de qualquer forma de
regulação, esteve fora do nosso campo de interrogações, criando assim uma
dicotomia radical entre economia e ética. Enquanto vivíamos no ritmo alucinante
de nossas rotinas, não nos demos conta de que fomos perdendo também a dimensão
do outro do nosso horizonte de expectativas. O outro foi se tornando um
elemento cada vez mais acessório no nosso campo de relações, exercendo uma
função mínima, de natureza compensatória, que servia apenas para nos autorizar.
Foi aí que o outro foi se transformando em um like, uma curtida, um nude, uma
mensagem de voz, na placa de carro divulgada por um aplicativo de celular como
resultado de um processo recente de desenvolvimento tecnológico.
Talvez nossa dificuldade hoje em respeitar o
isolamento social como forma de garantia da vida futura no planeta se dê pelo
fato dessa política de prevenção se justificar em nome da coletividade. Tenho
escutado muitas pessoas dizendo: “Eu não tenho doença”, “tenho uma boa
imunidade”, “sou jovem”, o que demonstra que a figura do outro, como aquele que
dá consistência para o eu, já não está presente no horizonte dessas pessoas que
se veem como indivíduos privatizados. A insistência na livre circulação é um
efeito de uma sociedade que aprendeu a se enxergar como autônoma, gestora de si
e de indivíduos que se veem como seres atomizados e que, portanto, enxergam
suas existências como uma esfera independente do corpo social.
A inserção da tecnologia em nossas vidas fortaleceu
a crença em um sujeito independente e autocentrado. Como diz a psicanalista
Maria Homem, o século XX fetichizou a tecnologia que, hoje, mostra seus
limites. O smartphone acabou com as fronteiras que dividiam o espaço doméstico
do espaço laboral. Com o celular ao alcance de nossas mãos, tornamo-nos
indivíduos conectados. Sempre com pressa e sem tempo para parar para se avaliar
e poder retomar o percurso, fomos em grande parte forçados a entrar no divã de
nossas casas para poder recuperar um elo perdido com o mundo e com nós mesmos.
Penso que a crise do covid-19 talvez seja uma
boa oportunidade de aprendermos, isolados, a nos ouvir melhor (quem dispõe
desse privilégio), desacelerando nossas atividades e mudando as regras de um
jogo social que nos interpela à pressa, à necessidade de permanente conexão e
ao trabalho ininterrupto. O filósofo Preciado nos dá uma dica de como começar
esse percurso de contraofensiva a esse modelo de sociedade que avalia pessoas
por sua produtividade. “Usemos o tempo e a força da clausura para estudar as
tradições das lutas e resistências minoritárias que têm nos ajudado a
sobreviver até agora. Desliguemos os celulares. Desconectemos a internet.
Façamos o grande blecaute frente aos satélites que nos vigiam e imaginemos, junto,
a revolução que vem.” É um exercício difícil, pois exige a mudança de um modo
de estar no mundo, mas talvez nos ajude a repensar o mundo que criamos e o
mundo que somos. Negar a oportunidade de nos percorrer nesse momento é aceitar
ficar no meio do caminho, barrados pela impossibilidade de continuarmos a ser o
que éramos e pela fantasia da concretização de um mundo ideal, sem contradição.
O
MEDO DE ENGORDAR
EM TEMPOS DE COVID-19 – TEXTO #2
EM TEMPOS DE COVID-19 – TEXTO #2
Marcelle
Silva (Doutora em Sociologia – UFC)
Em tempos de Covid-19,
a gordofobia (enquadramento hegemônico e socialmente aceito do corpo gordo) tem
se manifestado diariamente na forma de memes que comparam corpos antes e depois
do período de confinamento. Em geral, corpos magros que se transformam em
corpos gordos em um curto período de tempo, tendo em vista que, ao menos no
Brasil, estamos vivenciando essa nova modalidade de ficar em casa há menos de
dois meses. E muitas pessoas tem compartilhado esses memes em suas páginas de
redes sociais e em grupos de Whatsapp como se fosse muito engraçado engordar,
ou ter medo de engordar; como se fosse natural tratar esse assunto como se
engraçado fosse; como se não estivéssemos presenciando um evento histórico no
qual milhões de pessoas estão morrendo no mundo todo, uma pandemia de um vírus
que tem atravessado fronteiras geográficas, de classe, de raça, geracionais e
de gênero.
É certo que mesmo antes
do surgimento da internet, o corpo gordo já figurava como um estigma, um sinal
corporal que despertava a curiosidade das pessoas, que suscitava o riso, que
remetia ao pecado da gula e, consequentemente, certo grau de desaprovação
diante do olhar do outro. Entretanto, nem sempre foi assim. Nos tempos da
proclamação da República brasileira, engordar não representava um medo. A
preocupação com a falta de alimentos era maior do que pensar em regimes e
dietas. Ter um corpo gordo, na verdade, era sinônimo de fartura, de prestígio,
era um privilégio no contexto de um país assolado pelo drama da desnutrição e
da realidade da fome, considerados por muito tempo, um problema de saúde
pública no Brasil. Foi somente com o passar dos anos que a representação dessa
realidade mudou radicalmente, sobretudo com a disseminação das balanças, do
acesso facilitado à prática de pesar o corpo e saber o próprio peso. E a
imprensa, com suas formas de espetacularização da vida cotidiana, foi um fator
importante nessa mudança.
Os corpos representados
nos jornais e revistas, na televisão e no cinema, representavam aquilo que era rejeitado
e o que era idealizado na sociedade, e o que era rejeitado, muitas vezes, aparecia
acompanhado de mensagens e simbologias que faziam dessa rejeição uma piada.
Nesse sentido, quanto mais gordo um corpo era, mais motivos havia para fazer
desse corpo alvo de chacotas.
As concepções a
respeito do corpo gordo foram mudando na medida em que as concepções da ciência
sobre o corpo, de modo geral, foram se transformando. Houve um tempo em que o
corpo foi pensado como um armazém, então, era preciso armazenar comida nele,
mantê-lo cheio. Depois, especialmente com o desenvolvimento industrial, a ideia
que associava o corpo com uma máquina foi introduzida na sociedade, onde a
comida começou a ser entendida como um combustível necessário para o
funcionamento da máquina. A ideia de fracasso e de responsabilização individual
foi, então, uma consequência desse processo.
Mas
a pressão estética sobre os corpos não se espalhou de forma homogênea e
democrática para todos os corpos, já que ainda no século XX, era possível
perceber que as mulheres eram as personagens mais mencionadas na imprensa. Se
antes, ter um corpo com formas arredondadas era mais desejável por representar
um ambiente ideal para uma boa gestação, com o tempo, ter um corpo magro passou
a ser uma expectativa e, consequentemente, um padrão de beleza. Ter um corpo
gordo passou de motivo de orgulho para algo vergonhoso, virou uma doença, a
obesidade, condição associada a um rol de outras doenças, solidificando o
imaginário sociocultural que passa a enxergar e tratar a pessoa gorda como uma
pessoa fatalmente doente. Por ser uma doença, há necessidade de um tratamento,
de uma cura, isto é: é preciso emagrecer. Então, se a pessoa gorda, sabendo que
seu corpo representa uma anormalidade, resolve continuar gorda consequentemente,
essa pessoa é julgada, culpabilizada e responsabilizada por permanecer anormal.
Acontece que essas
concepções, que constituem uma visão hegemônica e socialmente aceita, não só
tem como desdobramento uma série de questões emocionais e psicológicas na
pessoa gorda, tais como depressão e ansiedade, que por sua vez desencadeiam
outro conjunto de problemas de saúde, como transtornos alimentares e
comportamentos suicidas, encorajam as pessoas não gordas a se sentirem no
direito de opinar sobre os corpos gordos e/ou expressarem suas opiniões de
formas preconceituosas que podem fomentar a violência em suas variadas facetas.
Nas sociedades mediadas pelas tecnologias de
informação e comunicação, com a facilidade proporcionada pelos computadores
pessoais e smartphones cada vez mais recheados de aplicativos com as mais
variadas funções, as pessoas não gordas sentem que tem uma liberdade ainda
maior de expressar suas opiniões e preconceitos sobre os corpos gordos.
Protegidas pelo anonimato dos perfis fakes de redes sociais ou pela distância
geográfica, se transformam em haters, indo até os perfis de redes
sociais de pessoas gordas para propagarem discursos de ódio que posicionam o
corpo gordo em um lugar de inferioridade, como se esses corpos não fossem
dignos de nada além de repulsa. Esse é um fenômeno que não é recente, não é uma
novidade, mas que hoje se tornou ainda mais visível porque as pessoas gordas,
antes desencorajadas a se mostrarem, estão cada vez mais ocupando espaços antes
ocupados apenas por corpos magros, estão cada vez mais fazendo suas vozes serem
ouvidas, seja através de seus ativismos online e off-line como de suas
pesquisas acadêmicas.
Não por acaso, no atual
cenário de pandemia do coronavírus entre as estratégias que as pessoas estão colocando
em prática para exercer a vigilância do outro, como ocorrem as práticas de
higiene, como e quando o outro dá passos para fora da porta da sua própria
casa, somam-se ao como e quanto o outro está investindo na manutenção de um
corpo magro. Não se trata de constatar como e se o outro está de fato
higienizando suas mãos com água, sabão e álcool em gel, se está utilizando
máscaras ou luvas, mas como e quanto esse corpo confinado está se movimentando
dentro das paredes de sua própria residência. Trata-se também de vigiar quais
alimentos estão sendo postos nos pratos das pessoas, em uma observância
obcecada com a forma como as pessoas se relacionam com os alimentos. Como se o
medo de engordar fosse maior do que o de morrer, e como se engordar fosse mais
contagioso do que o coronavírus. Cada vez fica mais evidente que gordofobia é
uma questão estrutural, uma parte da nossa cultura que passa despercebida pelas
pessoas não gordas, pelos movimentos sociais, pelos feminismos e pelas
políticas públicas. A gordofobia, conforme muitas ativistas e pesquisadoras
gordas vem reforçando em suas falas, postagens em redes sociais e pesquisas,
muito antes de termos nossas vidas confinadas em decorrência do coronavírus, é
estrutural e é alimentada pelas mídias.
Na primeira semana de
abril de 2020 a obesidade entrou para o grupo de risco de pessoas mais
suscetíveis a serem contaminadas pela Covid-19, e essa nova informação foi
veiculada na mídia como um “encontro de pandemias”, tendo em vista que existe
uma parcela significativa da população mundial que é, nos termos do IMC (o
índice de massa corpórea), obesa, acima do peso. A inclusão do corpo gordo no
grupo de risco significa muito mais do que dizer que pessoas obesas devem
redobrar os cuidados, devem se proteger ainda mais. Significa também que a
sociedade não está pronta para lidar com esse corpo, pois do ponto de vista da
saúde pública, os hospitais não estão preparados estruturalmente para acomodar
essas pessoas por serem “pesadas demais” para as macas, para as máquinas que
realizam tomografias, dentre outros tipos de exames. Significa dizer que todo
corpo gordo é doente, como se fosse impossível pensar que uma pessoa gorda
possa ser saudável, se alimentar bem, se exercitar, ser uma pessoa ativa, e
essa é apenas mais uma forma de gordofobia institucionalizada através do
discurso biomédico. Dizer que a gordofobia médica existe significa, de acordo
com o imaginário social hegemônico, romantizar a gordura, o excesso e o
exagero. E pensar assim é também uma forma de gordofobia, porque esse
pensamento reforça a amnésia cultural a respeito do corpo magro, como se este,
ao contrário do corpo gordo, fosse sempre saudável, tanto é que quando uma
pessoa magra morre em decorrência de alguma doença associada à obesidade, como
doenças cardiovasculares, é comum que se comente sobre os hábitos alimentares
e/ou se essa pessoa praticava algum tipo de esporte ou exercício físico, já que
para algumas pessoas é inimaginável uma pessoa gorda esportista, ou que tenha
uma alimentação saudável. É muito mais confortável julgar e deslegitimar a
experiência e o corpo do outro do que pensar de forma crítica, problematizar os
discursos e as práticas que se propõem como universais.
É preciso lembrar que a
percepção do corpo não é a mesma para todos, assim como ficar em casa e poder
fazer todas as refeições não é uma realidade compartilhada por todos. Escolher
o que comer, planejar um cardápio diário e/ou semanal dentre outras práticas
alimentares com as quais tantas pessoas estão ocupando seu tempo é um
privilégio dos grandes em um país assolado pela fome. O medo de engordar
deveria se converter em uma preocupação com a quantidade de famílias famintas
Brasil afora, tendo em vista que a realidade da fome está agravada em tempos de
Covid-19. Faces opostas de uma mesma moeda, retrato de um país que ainda precisa
caminhar muito em matéria de empatia. Assim como antes da pandemia, é tempo de
reforçar o óbvio, a diferença é que agora parece que temos uma audiência mais
numerosa do que antes, ainda que a escuta ainda seja extremamente seletiva.
CRÔNICA DE UMA PANDEMIA:
QUANDO UM VÍRUS É HUMANO E NÃO-HUMANO
QUANDO UM VÍRUS É HUMANO E NÃO-HUMANO
- TEXTO #3
Raquel G. Mesquita (Doutoranda em
Sociologia - UFC)
PARTE 1- O VÍRUS NO BAIRRO
O novo vírus chegou ao
bairro no início de maio, muitos se contaminaram, mas continuaram levando suas
vidas ‘normalmente’, afinal, eles- como o mundo- não podiam parar. “Parar” é
sinônimo de morrer (mas, “continuar” também não seria?). A dinâmica do bairro
seguiu com rigor a 1° lei de Newton, em que todo corpo tende a permanecer em
seu estado de repouso ou movimento, a menos que haja uma força contrária que se
aplique a ele. Foi assim que o vírus se espalhou rapidamente, de casa em casa.
Só depois que o vírus chegou aos mais incrédulos é que as pessoas começaram a
perceber a gravidade da coisa e o vírus começou a exercer sua força contrária
ao movimento.
Não foi fácil para as
pessoas deixarem hábitos de décadas: sentar na calçada, correr na mercearia
para comprar algum tempero para o almoço, brincar de bola na rua. Aos poucos o
bairro passou a um movimento lento, silencioso e triste. O bairro se rendeu à
paralisia do medo. Mas o medo nos impede de agir completamente. Foi assim, sem
saber como agir, que um doente foi passando o vírus a um outro, dentro de casa.
As famílias foram se contaminado endogenamente, afinal, como isolar um idoso
que já precisa de cuidados, como isolar a mãe de família sobrecarregada de
afazeres ou o pai já tão cheio de exigências sobre trazer o feijão para a mesa?
Ninguém estava preparado para uma pandemia.
As soluções para o
sistema de saúde não colapsar começaram a surgir, criaram o chamado grupo de
risco. Os que mais precisavam ser protegidos também tornaram-se os últimos a
serem atendidos, já que as chances de sobrevivência eram menores. Quem merece
viver ou morrer? Quem decide sobre quem vive ou morre? Mas os médicos estariam
pensando nisso quando, também em sobrecarga, precisando atender a tantos novos
casos? Enquanto isso, na Internet, vídeos de receitas miraculosas para aumentar
a imunidade, propaganda de remédios eficazes contra o vírus, e claro, a negação
da pandemia por parte do presidente, confundindo cada vez mais a população que
passou a desconfiar dos médicos, dos hospitais, do diagnóstico, acreditando no
seu mito e na solução dada há muito: cloroquina. Em quem confiar? No governo
que não acredita na ciência ou nos médicos que escolhem quem vai sobreviver?
PARTE 2- O VÍRUS COMO UM HÍBRIDO HUMANO
E NÃO-HUMANO
Desde o início da
pandemia muitos cientistas (biólogos, químicos, infectologistas,
epidemiologistas) tentam entender como o vírus funciona (de que é feito, como é
transmitido, como se comporta no organismo, afinal, para derrotar um inimigo é
preciso conhecê-lo, como bem ensinou Sun Tzu). Outros tantos saberes têm também
tentado dar respostas. São sociólogos, antropólogos, historiadores, filósofos,
economistas que tentam dizer o que o vírus significa (ou significará) para
nosso mundo. Seria o fim do capitalismo, o início de algo novo ainda não
imaginado? Seria só mais uma crise cíclica do capital (que voltará ainda mais
forte e com uma grande demanda de consumo reprimida por meses)? Como ficará o mundo do trabalho (agora que o
tele-trabalho foi exercido à exaustão?) E a economia? E a educação? O mundo (as
pessoas) vai se tornar mais humano e empático ou mais amargurado e descrente?
Como a geopolítica vai se reorganizar? E o Brasil, ah.. o Brasil...É preciso
urgentemente de respostas, eis a única certeza!
Nossa urgência em
entender o que está acontecendo reflete nossa necessidade de controle, um
controle sobre tudo que nos rodeia. Aqui, mais especificamente, um controle
sobre a natureza e sua expressão- o vírus. Uma natureza entendida como algo
distante e separada de nós.
Nós- humanos- precisamos
então abarcar e engolir a natureza, desvendando-a, entendendo-a e
controlando-a. Daí então a proliferação de tantos artigos para explicar o que está
acontecendo. É preciso compreender, domar, laçar o vírus, rapidamente,
urgentemente, antes que ele nos subjugue.
Quem vai entender primeiro, quem vai dar a resposta correta sobre o
mundo que virá depois? Seriam os intelectuais os oráculos da modernidade,
aqueles que vão dizer o que os deuses nos reservam? Estaríamos nós, modernos,
científicos, cartesianos, retornando a um passado repleto de curandeiros,
pitonisas e magos?
Mas como compreender
esse vírus se ele parece se situar tanto no campo da natureza (algo exterior ao
humano, algo que precisa ser controlado pelos humanos) como também, no campo do
social, já que estamos sentindo-o no nosso dia a dia, modificando nossas vidas,
nossas relações, mobilizando nossos afetos e subjetividades, além, claro, de o
considerarmos a partir de marcadores sociais como gênero, raça e classe
(afinal, quem utiliza o SUS, quem está na posição de cuidado na saúde
–auxiliares, técnicos em enfermagem e enfermeiros, quem se arrisca em postos de
trabalho que não pararam – como caixas se supermercado, repositores de estoque,
motoristas?). Afinal, o vírus é algo que
se situa no campo da natureza ou da cultura?
Pensando com Latour
(2019), o mundo moderno cria a separação entre natureza e cultura, rompendo,
definitivamente, com o passado e instaurando um tempo de aceleração. A
constituição moderna define então os humanos e não-humanos, suas propriedades e
relações, criando dois polos bem definidos e opostos um ao outro: “[...] cabe à
ciência a representação dos não-humanos, mas lhe é proibida qualquer
possibilidade de apelo à política; cabe à política a representação dos
cidadãos, mas lhe é proibida qualquer relação com os não-humanos produzidos e
mobilizados pela ciência e pela tecnologia”. (LATOUR, p. 42, 2019).
Contudo, para Latour, é
justamente essa divisão radical entre natureza (força transcendente) e
cultura/social (força imanente) que possibilita a proliferação de seres
híbridos, ainda que a constituição moderna negue a existência desses
quase-objetos (mistos, híbridos, natureza-cultura).
É nesse misto de
natureza-cultura que podemos situar o Sars-CoV-2, entendendo-o como um híbrido,
conjugando a natureza transcendental e incontrolável, que foge ao nosso
controle, como também o social e político, produzindo práticas de saúde
(determinadas orientações sobre higiene e cuidados profiláticos), disputas
sobre o meio de gestão da epidemia (lockdown, isolamento vertical), criação de
protocolos médicos (uso de cloroquina, corticoides, vermífugos), sendo, estes
mesmos território de disputas políticas (a exemplo do nosso país e as
declarações do presidente, bem como a movimentação e troca dos ministros da
saúde), além de questões éticas como quem salvar na falta de respiradores?
Para Latour, o desejo moderno
de separação entre natureza (transcendente) e cultura (imanente) nunca foi
alcançado. Pelo contrário, quanto mais
insistimos nessa separação mais proliferamos os seres híbridos, mistos,
inclassificáveis, ou seja, “[...] [q]uanto menos os modernos se pensam
misturados, mais se misturam. Quanto mais a ciência é absolutamente pura, mais
se encontra intimamente ligada à construção da sociedade” (LATOUR, p. 59,
2019). É nesse sentido que o autor escreve a famosa frase que dá título a um
dos seus livros, “jamais fomos modernos”. Somos cada vez mais produtores de
híbridos, seres que só existem na penumbra da natureza-cultura. Viveríamos,
portanto, em um mundo que ao mesmo tempo que separa a natureza da cultura, as
misturam, construindo novos seres, somos, para Latour, não-modernos.
PARTE 3- TEMPOS DE
INCERTEZAS
Em meio a uma crise
sanitária, econômica e política, ou seja, uma crise também híbrida, seguimos
seja no isolamento ou tendo que sair para trabalhar.
Nossa sanha cristã (apocalíptica-zumbi)
parece nos fazer, ao mesmo tempo, querer e temer o mundo pós quarentena. O que
virá depois? Ansiamos por sair do isolamento, mas estamos preparados para o
mundo do porvir? E o esse mundo será mesmo um lugar novo? Quanto tempo mais o capitalismo aguenta
parado? É a incerteza que no final se instala. Lidar com a incerteza, eis uma
grande dificuldade seja dos ditos modernos ou não-modernos.
Seria
então o momento de pensar uma racionalidade que incorpore, ou pelo menos,
reconheça a incerteza. Seria possível? Certamente essa mudança de perspectiva empurraria
a humanidade para um outro lugar que não o centro de tudo. Seria então o
momento para pensar o princípio da vida como central (princípio biocêntrico),
como queria o chileno Rolando Toro, com sua prática biodanzante?
Enquanto tudo isso
acontece, vamos olhando as fotos antigas e tentando nos agarrar às memórias,
como no filme A viagem de Fanny, quando a protagonista- uma menina judia que
fica responsável por levar um grupo de crianças da França para a Suíça, durante
a 2° guerra mundial- para se proteger do mundo a sua volta, pega sua antiga
câmera fotográfica e revive o instante em que as fotografias foram tiradas.
Quais fotos você tem olhado, quais instantes firmam você no passado e ajudam
nessa fuga?
LATOUR,
BRUNO. Jamais fomos modernos: ensaio de antropologia simétrica. São Paulo: Editora 34, Rio de Janeiro, 2019.
PODEM AS DISTOPIAS
SEREM FEITAS DE ESPERANÇA? – TEXTO #4
SEREM FEITAS DE ESPERANÇA? – TEXTO #4
Rachel D`Amico Nardelli (Doutoranda
em Sociologia – UFC)
Lembro
de Gattaca - A Experiência Genética[1], filme dos anos 90 do século passado
(ainda é estranho escrever assim de um tempo tão perto). Em uma das primeiras
cenas do filme há uma catraca na entrada de Gattaca, uma empresa que faz
lançamentos espaciais, nela o sujeito coloca seu dedo indicador para que uma
gota de sangue seja avaliada se ali é permitido ou não entrar.
Esta
é uma das primeiras memórias dos meus encontros com a distopia, eu poderia
afirmar que é por causa do seu caráter Deleuziano de uma sociedade que controla
[2] até as predisposições genéticas, mas não é.
No
signo da gota de sangue entendi o que é um Corpo anormal, o meu, tanto quanto
daquele sujeito posto na tela. Mas é na pele que a gente sente.
Paul
Valéry diria que o mais profundo é a pele [3], eu não saberia dizer se é o mais
profundo, mas dela a gente não escapa: minha cicatriz no supercílio por ser
lésbica, minha tatuagem da bandeira do orgulho lgbt, a marca de tesoura de
alguma memória da infância já desfeita.
Mas
algo muda neste agora. Até tempo que só se inscreve na pele parece que desviou.
Ele passa por ela, mas não a toca. Sem abraços ou beijos a vida é uma saída à
francesa.
O
TBT [4] é uma imagem forjada, como ferro, na tela total [5]. Tentativa de
voltar a um passado sem falhas frente a um futuro incerto, um simulacro.
Como
n'A Invenção de Morel [6], a imagem registra pessoas que já não estão mais lá.
Uma ilha inabitada povoada de memórias e desejos suspensos.
As
fotos, lives, falas tão "selfie” centradas proliferam.
Frente
à nova peste (as pestes são sempre políticas), escolho o silêncio - até agora. Renego
o direito fascista das palavras de dizerem sobre mim. Como num poema de Matilde
Campilho que diz: "Daniel, entretanto, está morto, Walter emudeceu no
caminho da composição e os jornais usam datas estranhas em seus cabeçalhos, junto
aquelas figuras de aviões e homens fardados, aparece o nome do décimo sexto
mês, mudou tudo honey boo e a distância entre nós não foi, certamente, a causa
para toda a explosão" [7].
Entre
a distância e os Daniels mortos emudeci no caminho para olhar com calma as
nuances, desviar das imagens vazias que aglomeram no toque dos dedos. Escolhi
um contra-tempo, um fazer outro do destino, escutar o silêncio de uma metrópole que insiste em não
parar, que mata na velocidade de seus metrôs. A mudez é para honrar as vidas.
A
distopia toma forma. O sangue, o corpo, a pele. Com eles novos rituais:
Passar
álcool nas mãos,
Escutar
números pelo almoço,
Imagens
feitas por drones,
Vozes
abafadas pela máscara,
Nunca
sair da porta de casa sem o colar que alcança meu peito em proteção.
A
distopia inverte a lógica que Baudrillard diz das imagens: onde aquilo que está
exposto na tela parece mais real do que a realidade.
A
distopia permite a falha, como de um vírus. Um vírus na tela total que faz
quebrar o simulacro.
Voltando
a Gattaca, Vincent (Ethan Hawke), o personagem principal, é míope (um defeito
genético) e se esconde por meio de lentes. Num acontecimento impensável se vê
obrigado a jogar suas lentes fora e sem enxergar atravessa uma rodovia
desviando dos faróis desfocados dos carros até chegar à um campo de painéis
solares refletindo a primeira luz do amanhecer. O personagem é uma falha na
ordem genética, uma falha por onde reflete a luz. Não a luz falsa e forjada do
iluminismo humanista que embasa a morte daquele que não é normal, mas a luz sem
forma de um cristal líquido quando a tela do celular quebra e interrompe o
acontecimento cotidiano, reiniciando o presente.
[1]
Gattaca - A experiência genética - de 1997 dirigido por Andrew Niccol, fala de uma distopia onde os humanos são
melhorados e tem suas característica genéticas escolhidas em laboratório, estas
escolhas incluem não só o físico como a cor dos olhos, cabelos e pele, mas as
aptidões e predisposições ä doença. Uma eugenia controlada antes de nascer. Os
que nascem das relações sexuais são considerados inválidos. Vincent Freeman(
Ethan Hawke) é concebido sem qualquer "melhoria" genética. Míope, de
pouca estatura e com o coração, ele tem o sonho de ser astronauta, mas com seu
código genético ele só consegue ser faxineiro em Gattaca. Para realizar seu
sonho ele compra a identidade de Jerome (Jude Law), um ex-nadador profissional
que tornou-se paraplégico após um acidente. No filme há todo um controle dos fluidos, é pelo sangue, pela
urina, pela swab na boca que as identidades são confirmadas. É essa testagem
que definem quem é ou não inválido. E o aparato técnico para isso é uma catraca
aparentemente comum, como aqueles que basta encostar o cartão magnético para
ouvir um apito seguido de um sinal verde para prosseguir. Porém em vez de um
leitor de cartão há uma pequena agulha da qual uma gota de sangue é extraída.
Tal qual os rotineiros testes de glicemia que somos vez ou outra convidados a
fazer.
[2]
Faço referência ao texto de Gilles Deleuze - Post-scriptum
sobre as sociedades de controle.
[3]
Gilles Deleuze, em A lógica do Sentido, faz
referência à um diálogo da peça do filósofo, escritor e poeta francês Paul
Valery, que cito, seguida da tradução livre:
" — Je n’en doute pas. Et
c’est pourquoi je complète ma formule : Ce qu’il y a de plus profond dans
l’homme, c’est la peau, — en tant qu’il
se connaît. Mais ce qu’il y a de… vraiment profond dans l’homme, en tant qu’il s’ignore… c est le foie…
Et choses semblables… Vagues ou… sympathiques !" "— (Não tenho dúvidas sobre isso. E é
por isso que concluo minha fórmula: a coisa mais profunda do homem é a pele -
como ela se conhece. Mas o que é ... realmente profundo no homem, como ele se
ignora ... é o fígado ... E coisas semelhantes ... Ondas ou ...
simpatia!)."
[4]
"TBT" é a abreviação da gíria
norte-americana Throwback Thursday, algo
como voltar à quinta-feira ou
quinta-feira do retorno. Nas mídias sociais é usada nas quintas-feiras com
imagens importantes, normalmente felizes, de tempos já passados com a hashtag
"#tbt".
[5]
BAUDRILLARD,
Jean. Tela total: mito-ironias da era do virtual e da imagem. Ed. Sulina, 1999.
[6]
CASARES, Adolfo Bioy. A invenção de Morel. Globo
Livros, 2018.
[7]
CAMPILHO, Matilde. Joquei. São Paulo: Editora 34,
2015.
REFERÊNCIAS
BARTHES, Roland. Aula. Editora Cultrix, 2004.
BAUDRILLARD, Jean. Tela
total: mito-ironias da era do virtual e da imagem. Ed. Sulina, 1999.
CASARES, Adolfo Bioy. A invenção de Morel. Globo Livros, 2018.
CAMPILHO, Matilde. Jóquei. São Paulo: Editora 34, 2015.
DELEUZE, G. Post-scriptum sobre as sociedades de controle. In:
Conversações. Trad. de Peter Pál Pelbart.Rio de Janeiro: Ed. 34, 1992.
DELEUZE, Gilles. Segunda Série de Paradoxos: Dos efeitos de
superfície. In: _____. Lógica do sentido. (Tradução Luiz Roberto Salinas
Fortes.) São Paulo, Perspectiva, 2003, p. 05‐12.
GATTACA - A experiência
genética. Direção de Andrew Niccol. EUA: Columbia Tristar Pictures, 1997(1dvd).
VALÉRY, Paul. L'Idée fixe:
ou Deux hommes à la mer. Gallimard, 1966.
É POSSÍVEL
RECONFIGURAR O SÃO JOÃO
E A VIDA EM
TEMPOS DE COVID-19? – TEXTO #5
Thiago
de Castro (Doutorando em Sociologia – UFC)
Ai que saudades que eu sinto
Das noites de São João
Das noites tão brasileiras Nas fogueiras
Sob o luar do sertão...[1]
Há
pelo menos duas décadas o final do mês de maio e início do mês de junho são,
para mim, marcados pela a ansiedade por adentrar em uma atmosfera diferente,
permeada por fortes cores, melodia de sanfona e ritmo frenético de zabumba.
Obviamente, me refiro ao São João ou
às festas juninas, como é
popularmente conhecido o conjunto de folguedos e festividades consideradas
típicas do período junino na maior parte do território brasileiro. Quem é
nordestino, sobretudo quem vem de cidade interiorana, como eu, provavelmente
cresceu imerso em um ambiente em que parte dos espaços sociais se viam
invadidos por festas escolares e comunitárias onde as pessoas se trajavam de
modo caricato, com roupas estampadas,
acendiam fogueiras e enfeitavam terreiros com bandeirinhas coloridas tão logo
os primeiros dias de junho aportavam no calendário. Com o tempo, percebi que
esse cenário sazonal foi se modificando progressivamente, envolvido pelo
hibridismo cultural do que se convencionou chamar de pós-modernidade, entretanto, determinados signos pareceram ficar lá,
se não intactos, ao menos reinventados, como uma espécie de chama viva a aquecer a memória dos mais
sentimentais, como eu. Mesmo que as coisas não fossem as mesmas, seguimos nos
preparando simbolicamente para adentrar ano após ano na atmosfera junina, o
que, sob o ponto de vista burocrático do mundo trabalho, parecia ao menos
anunciar que já havíamos cumprido metade de nossa missão cíclica de
sobrevivência na sociedade capitalista, iniciada em 1 de janeiro e finalizada
em 31 de dezembro. Este ano, porém, não houve demarcação precisa de tempo. A
pandemia do COVID-19, que nos pôs em quarentena desde o início de março, nos
imergiu por completo em um tempo/espaço pouco preciso, onde os dias, as horas e
meses parecem todos iguais, diluindo nossos referenciais ritualísticos
orientadores da vida.
O
surto mundial do novo coronavírus e o estado de distanciamento social que este
nos impôs, é importante que se diga, não representou necessariamente para parte
da população – na qual me incluo – uma desaceleração das atividades produtivas.
Ao contrário. A sensação que tenho é a de que essa situação reconfigurou o
panorama de atividades decodificadas como trabalho.
Despojado de um dos meus principais referenciais ritualísticos encarregados por
sinalizar um momento de inflexão na ação
produtiva regular, vejo-me imerso nela permanentemente, muitas vezes sem
sequer me dar conta disso. Quando vejo, já é madrugada. Quando dou por mim,
junho já chegou. E provavelmente passará sem que eu nem me dê conta, contrariando
as expectativas que esse período costuma me trazer anualmente. É preciso que se
diga, porém, que esta minha sensação não se dá por acaso. Muito provavelmente
eu pense assim porque, em minha vida, pouca coisa mudou em virtude da
quarentena. Do ponto de vista monetário, não houve grandes alterações em meu
cotidiano e, em determinados aspectos, ouso afirmar que até melhorou, já que o
impedimento na oferta de alguns serviços dos quais eu fazia uso me oportunizou
uma experiência econômica que muitos certamente não tiveram. Imagino que
aqueles que tiveram seus salários cortados parcial ou integralmente, ao
contrário de mim, têm sentido muita diferença, sobretudo aqueles que possuem um
padrão de vida distante do meu, que tenho o privilégio de estar na pós-graduação,
cursando um doutorado. Privilégios raciais e de classe sobre os quais ainda
temos muito o que discutir, sobretudo depois do rastro de destruição que essa
pandemia deixará em um país desgovernado como o Brasil de Bolsonaro (mas isso é
assunto para outros textos).
Minha
sensação de reconfiguração da vida produtiva provavelmente ocorre porque a
interrupção das atividades presenciais ocasionada pela quarentena não veio
acompanhada de um impacto significativo no meu orçamento mensal, por exemplo, ou
no de meu esposo. Também não trouxe uma grande lacuna no quesito entretenimento, já que as plataformas de
streaming, como Netflix, Globo Play e Amazon Prime Video estiveram desde o
primeiro dia de quarentena ao alcance de nossas mãos para nos livrar do tédio e
nos fazer relaxar após cansativas horas de trabalho e estudo remotos. A leitura
e as tão populares lives sobre os
mais diversos assuntos também fizeram bem sua parte, juntando entretenimento
com a possibilidade de aumentar, de quebra, o capital simbólico tão valorizado nos espaços nos quais circulamos. Essa, todavia, não é a realidade das famílias
de baixa renda, que certamente sentiram de modo bastante incisivo a mudança da
vida, que veio acompanhada de uma forte precarização material da mesma. Jutith
Butler (2019), em Vida Precária: os
poderes do luto e da violência, aponta de modo bastante assertivo a
existência da vulnerabilidade da vida
como um elemento humano capaz de igualar a todos os indivíduos, mas que se
encontra desigualmente distribuído em nosso mundo, onde alguns estão mais
expostos a ele que outros. Me parece ser esse o caso. Não me encontro tão
exposto, o que facilita desenvolver a sensação de continuidade da vida, ainda
que “reconfigurada”.
Em
virtude da proximidade do que seriam as festas juninas, caso o vírus mais
popular do mundo neste momento não estivesse fazendo tão bem seu trabalho de
amedrontar a onipotente espécie humana,
e ensaiando uma reconfiguração do sentimento junino das minhas memórias
afetivas, ousei perguntar no grupo de WhatsApp
da quadrilha junina da qual faço parte como as pessoas pretendiam vivenciar o
São João em 2020, já que a quarentena havia frustrado nossas pretensões
festivas. Em minhas pretensiosas hipóteses, esperava receber a descrição de
táticas inventivas para manter vivas as simbologias juninas que eu julgava
compartilhadas por todas as pessoas ali presentes. Mas não recebi sugestões,
apenas incertezas e alguns lamentos. A saudade da festa era grande, mas a
preocupação com o amanhã e, em muitos
casos, com o hoje era maior. Algumas
pessoas disseram considerar o São João
deste ano já morto. De início, achei que estavam se referindo ao momento
específico da festa, o mês de junho e suas simbologias, mas depois alguém me
lembrou que, para quem dança São João e
participa desse universo, ele acontece o ano inteiro. O mês de junho é
apenas o momento de maior ebulição. Nesse sentido, percebi que quem falou de
morte, se referia apenas a uma morte
simbólica não de algo esporádico, mas cotidiano, que pode ser revivido a
qualquer momento, mas apenas para o ano
que vem. Talvez tenha sido neste momento que me dei conta de que a reconfiguração da vida, no intuito de que
ela não pare, é um privilégio do qual nem todos dispõem. Para alguns, a
interrupção do cotidiano é um corte direto na pele, sentido com intensidade infinitamente
maior, pois ele vem acompanhado de efeitos não apenas subjetivos, mas
principalmente materiais.
O
chamado movimento junino do Ceará,
formado pelos participantes de quadrilhas juninas das diferentes regiões do
Estado, hoje conta com uma cadeia produtiva própria, capaz de gerar renda para
profissionais independentes como costureiras, sapateiros, artesões e músicos,
que enxergam no ciclo junino uma importante oportunidade de geração de renda. O
São João aquece o comércio das cidades, com a intensa busca por tecidos, aviamentos
e materiais cenográficos de todas as ordens. Na maior parte das vezes, os
profissionais beneficiados pela festa são os comerciantes e artistas locais,
que vislumbram nesse período uma chance de aumentar suas reservas financeiras.
Mas, para além dessa importância econômica, a quadrilha junina – hoje mais um
espetáculo de artes integradas do que uma manifestação popular tradicional – é
parte importante da vida dos que dela fazem parte, os chamados quadrilheiros. Ela constrói um universo
próprio, marcado por uma sociabilidade geradora de afetos e sentimentos que
marcam profundamente a subjetividade dos sujeitos que o constituem, parte
significativa deles pessoas LGBT+.
O
campo das quadrilhas juninas, ao menos nas cidades do interior cearense, tem se
mostrado para mim como um espaço marcado pela presença de subjetividades e
corporalidades Queer, um palco para a
interação social cotidiana de pessoas que apresentam identidades sexuais e de
gênero situadas à margem de processos que se pretendem completamente
estruturantes. Por meio dele, como tenho pensado nos últimos tempos, esses
sujeitos parecem ampliar uma condição
liminaridade, nos termos do antropólogo Victor Turner (1974; 2015). Suas
existências simbolicamente situadas em uma espécie de entre, em virtude de uma experiência social vivida em diferentes
medidas nas margens dos dispositivos normatizadores, encontram no contexto
junino um ambiente que, ainda que mediado por regras hegemônicas, é capaz de
lidar com as diferenças com menos resistência, o que estimula as criatividades
subjetivo-corporais, tornando-as mais livres em comparação a outras situações
da vida.
Considerando tais aspectos, talvez
seja por isso que para alguns quadrilheiros seja difícil reconfigurar a vida, já que o São João parece ser para tais pessoas
uma dose a mais de liberdade interacional. Esta certamente não se encerra no
ambiente junino, mas ele parece ser um espaço de flexibilização dos fluxos
sociais forjados em estratégias de poder hegemônicas, ampliando a energia
liminar presente em determinados corpos. Olhando a partir de tal perspectiva,
percebe-se que há determinadas coisas que não se reconfiguram tão facilmente. A
interrupção brusca de um processo que, longe de se restringir às festividades
do mês de junho, se estende por um ano quase inteiro por meio de ensaios,
eventos arrecadativos e demais atividades que visam uma preparação para esse
período específico, mostra que a maior ebulição do ponto de vista
socioantropológico ocorre não no palco sazonal das festas juninas, mas nos
bastidores da preparação do espetáculo, que se dá no decorrer do cotidiano. Olhando
por esse lado, não foi apenas uma festa
anual que parou, mas parte significativa das interações sociais que atuam na subjetividade dos sujeitos
que a fazem e que ajudam a construir os significados que dão sustentação às
suas existências. O São João, para os sujeitos aqui enfocados, não representa
apenas uma expressão que mistura simbolicamente elementos religiosos e
profanos, inscritos em uma suposta identidade cultural por meio de um discurso
tradicionalista. É mais que isso. Trata-se um movimento que atravessa seus
corpos, que constrói sentidos e se mistura com suas vidas no aqui e agora, com todas as demandas
materiais e subjetivas implicadas nesse processo. Reconfigurá-lo não tem a ver
apenas com adaptar símbolos festivos como se estes fossem estáticos e
cristalizados, mas, como ocorre com qualquer atividade sentida como socialmente
vital, exige condições adequadas para tal.
Enquanto isso não ocorre, seguimos aguardando o próximo São João, na
esperança de que a vida reestabeleça seus fluxos e os sentidos cotidianos.
REFERÊNCIAS:
BUTLER, Judith. Vida Precária: os poderes do luto e da
violência. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2019.
TURNER, Victor
W. O processo ritual: estrutura e
anti-estrutura. Petrópolis: Vozes: 1974.
_________________.
Do ritual ao teatro: a seriedade
humana de brincar. Rio de Janeiro: Editora UFRJ, 2015.
[1] Trecho da
música Noites brasileiras,
interpretada por Luiz Gonzaga.
AMAR
A SI SEM DEIXAR
DE
AMAR OS OUTROS E VICE-VERSA – TEXTO #6
Gabriel Pontes (Mestrando em Sociologia – UFC)
Desde março de 2020, o mundo entrou
em colapso com a rápida proliferação do covid-19 em todos os lugares. O vírus
se espalhou através do contato entre os corpos, foi noticiado na mídia e causou
pane no sistema de saúde. Assistimos o vírus proliferar por aí ignorando as
demarcações territoriais dos países, com seus refinados idiomas, governos e
moedas nacionais, infectando quem tem poder econômico e quem não tem. No
Brasil, o vírus ignorou que estamos vivendo um cenário político ruim demais
para combatê-lo, pois o presidente e seus aliados pouco se importam com a vida
humana, sobretudo, com a vida das pessoas que dependem do SUS. Para eles talvez
o mais coerente seja passear de jet-ski quando o país atingiu a marca de dez
mil mortos, porque morte “é assunto de coveiro”.
O problema é que o caos sanitário e
político no Brasil estão afetando diferentemente as pessoas. Mulheres, crianças
e idosos passaram a ser abusados de forma mais intensa em seus domicílios,
pessoas que sobrevivem de subempregos e trabalhos informais foram ainda mais
explorados e pauperizados, LGBQIA+ passaram a viver mais forte as violências
que já viviam, como o abandono, a falta de dinheiro, a solidão e o desamparo na
saúde. Em outras palavras, problemas sociais não nasceram na pandemia, mas pioraram
com ela. E isso afeta nossos corpos, com ou sem o vírus. Nossos corpos são
afetados com a fome, a ansiedade, a falta de cuidados e de esperanças.
Em meio a esse período complicado,
tenho tentado ver o lado bom das coisas. Acredito que todes nós temos a
capacidade de aprender na dificuldade e nos reinventar, pois se reinventar às
vezes também é nossa única forma de sobreviver.
Estou passando o isolamento social
sozinho, apenas na companhia de dois gatinhos, no apartamento onde moro. As
meninas que dividem o apartamento comigo estão fora de Fortaleza, e ainda não
podem retornar com segurança, então passei a conviver apenas com a mobília que
elas deixaram. O contato com outras pessoas tem se dado quase só virtual, se
não levar em conta as escapadas que eu dou até o mercantil. Passo o dia sem ver
pessoas, até nas minhas caminhadas diárias eu não vejo, pois desço tarde da
noite até o estacionamento do condomínio e fico andando por entre os carros e
as motos. A minha companhia tem sido basicamente os eus que me habitam: comemos, dormimos, estudamos, brigamos, rimos,
choramos, conversamos, gozamos... Todos juntos.
Além dos meus eus, na pandemia tenho conversado com colegas trans nos grupos de whatsapp e acompanhado os relatos de
alguns sobre os obstáculos enfrentados. Nessa pandemia, toda área de saúde está
focada somente no combate ao vírus, e isso é totalmente compreensível e
necessário. Porém, para nós trans que escolhemos hormonizar (fazer uso regular
de hormônios) o acompanhamento médico é muito importante, e o acesso que já era
difícil agora está impossível, porque nenhuma alternativa foi pensada e
oferecida pelos órgãos competentes. No caso de homens trans e transmasculines,
a testosterona sintética pode causar complicações, como problemas menstruais,
taxa alta de glicose, dores no fígado, e, além disso, precisamos da receita
médica para comprar o hormônio na farmácia. E como recorrer a algum
profissional em pleno isolamento? Daí a importância de estar entre os nossos para trocar informações
e buscar o apoio que muitas vezes nos é negado. Eu mesmo estou buscando e
oferecendo apoio nessas redes, pois iniciei meu processo hormonal há pouco
tempo e ainda tenho dúvidas sobre os efeitos, então recorri aos amigos para me
aplicar (pois tenho medo de agulha) e conversar sobre o assunto. São questões
que a maioria das pessoas não entendem, pois não vivem e não sabem o que é um
protocolo hormonal. Na minha experiência, a testosterona já está mudando tudo.
Acordo às oito da manhã com uma disposição física que nunca tive antes! Também
sinto raiva com mais frequência, excitação com mais frequência, e por aí vai.
Constantemente penso que entramos na pandemia sendo “uma pessoa” e vamos sair
dela sendo outra, e no meu caso, essa pessoa terá até outra voz.
Talvez o lado bom da pandemia – se é
que isso é mesmo possível – seja essas redes de apoio que construímos para
sobreviver a ela. De uma forma ou de outra, essa experiência tem me feito
compreender que é importante saber ficar sozinho e também saber desfrutar a
companhia das pessoas, como num processo de amar a si sem deixar de amar os
outros e vice-versa. Os livros, filmes, e séries também são minha rede de
apoio. Paul B. Preciado é meu companheiro de pesquisa e de vida, pois me
reconheço em suas palavras ácidas e profundas. Ele me faz rir e refletir com
frequência, é incrível, parece mesmo um relacionamento! Além dele, tenho outros
favoritos que sempre estão por perto na cabeceira e no pensamento.
Ninguém sabe como estaríamos hoje se
não tivesse acontecendo a pandemia. Talvez nos mesmos lugares e nas mesmas
rotinas, talvez não. Só podemos imaginar, e mesmo assim com limites. Mas o que
podemos saber ao certo é o que nós fizemos nesse tempo e quem nos tornamos,
pois certamente o mundo não voltará a ser o mesmo e nem nós.
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